segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

Semáforo

Postado por Pedro_Almada às 13:51
    Existe um momento, talvez único e inconfundível, em que o homem descobre ser fraco e, ao olhar a sua volta, enxerga nada além de uma grande avenida movimentada, um céu cinza, um semáforo vermelho e um amontoado de rostos estranhos. Desconhecidos.
    Nesse mesmo momento, como se o pensamento fosse a extensão ilimitada de um único segundo, um monte de ideias começam a surgir na mente desse mesmo homem. “Aquela mulher bem ali”, pensa, “distraída, olhando no sentido contrário à mão da avenida”. Mas a mulher não é tão interessante, e logo perde a graça observá-la.
Entre todos aqueles rostos, nota-se uma criança chorosa apertando fervorosamente os dedos exaustos de um pai estressado. Os dois esperam o semáforo que acaba de tingir-se de verde.
    “Pobre criança”, pensa, “nova demais para dizer o que pensa e, ainda que pudesse... Nova demais para ser ouvida”. Procura-se nos rostos, mas não há um sorriso. Não aquele espontâneo, cheio de vida e vontade. Não, apenas um sorriso frio, como uma barreira para conter os males do mundo e, no processo, barrar até mesmo os bons momentos. Uma senhora passa. Um moletom cinza e uma saia comprida, bengala e olhos pesados, com as pálpebras enrugadas escorrendo no canto das olheiras. Ela não diz nada, apenas caminha pelo passeio. Não há nada legível nela.
    Mais uma vez, nota-se a mulher distraída do outro lado da rua. Olhando o sentido contrário à mão da avenida. Algumas pessoas nem ligam para o trio de luz acima de suas cabeças, dizendo “vá”, ou “espere”. Não, alguns ignoram.
    O céu cinza é profanado por uma figura metálica e imponente, rasgando o céu com velocidade admirável, enquanto seu zumbido, oriundo das turbinas, abafa por um segundo as conversas que pairam no ar.
    Uma garotinha, debruçada no ombro da mãe, cobre os ouvidos para impedir o som ensurdecedor, ela faz uma careta e simula um choro. A mãe, pacientemente, apalpa as costas da filha, fazendo “shhh, vai passar, querida” e, para minha surpresa, é bastante convincente. Sim, minha surpresa, porque sou eu o homem na calçada, olhando o movimento, fitando os rostos desconhecidos e estremecendo a cada sorriso frio, sem vontade. Sou eu o homem que se viu fraco.
    A mulher do outro lado da rua, aquela distraída de antes, ainda não se toca, parece meio confusa. Seus olhos não estão tão interessados no movimento da rua. Olhando para o sentido contrário à mão da avenida. O semáforo alterna mais uma vez. Uma seguinte leva de pessoas passa. A mulher, quase pronta para atravessar, deixa cair um chaveiro prateado. Prateado, pelo menos é o que parece, pois sua luz cintila por um breve segundo. Mas poderia ser bem qualquer coisa, vidro, ouro... Mas cai, independente do que seja. E ela se abaixa para pegar. A mulher, então, detém-se em um folheto de propagandas. Promoções de sapatos, penso eu. Provavelmente nunca o saberei.
    Enfim vem então a manada civilizada, pisoteando educadamente os pés uns dos outros, dizendo “opa, sinto muito”, “com licença, por favor”, “não é nada, está tudo bem”, “fique a vontade”, “foi mal, chapa”. As frases automáticas, então, se misturam e, logo, não é nada além de um burburinho.
    O sinal troca, mais rápido do que eu percebo. Não sei porque ainda não atravessei, mas a manada se afasta e a rua se abre para os veículos. A mulher, ainda me referindo à distraída, levanta-se com, adivinhe, distração. O chaveiro está bem seguro em suas mãos naquele momento. Ela olha para o lado, não o certo. O sentido contrário à mão da avenida.
    Então ela avança. Desrespeitando as leis da selva, deixando para trás a manada impaciente, ela se adianta. Mal sabe ela que o semáforo grita verde. Mas a mulher não percebe, faz menção de colocar o chaveiro dentro da bolsa.
    Alguém gritou de susto, tenho quase certeza. “Não adianta”, pensei comigo.
    Um ônibus buzinou. “Não adianta”, pensei comigo.
    A mulher não notou, estava olhando o sentido contrário.
    O objeto cintilante voou. Acima de nossas cabeças, acima do semáforo, brilhando, não vermelho, verde ou amarelo. Era prateado, um brilho reluzente, como uma quarta luz, outra bola brilhante sobrevoando o asfalto. E a luz se apagou.
    Não sei, ao certo, o sinal que ela queria nos dar. Mas a mulher, distraída que estava, não notou, nem por um segundo, seu objeto brilhar como uma estrela cadente. Tão fulminante, rápido que, não sei ao certo, talvez eu tenha sido o único a perceber.
    O resto do dia, a avenida é interditada. Não há mão, nem para um lado, nem para o outro. Não há a manada, não há ninguém dando ouvidos às bolas incandescentes. Mas nem ali, no meio da rua, sobre as listras brancas, uma coisinha brilha. Um chaveiro prateado, isso agora o sei. A silhueta de um anjo.

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